quarta-feira, 29 de julho de 2009

COMO O CHARLATANISMO VENDE


Por William T. Jarvis, Ph.D. & Stephen Barrett, M.D.

Os charlatães modernos são vendedores fantásticos. Jogam com o medo. Fornecem esperança. E depois que te fisgam, farão você voltar por mais . . . e mais . . . e mais. Raramente suas vítimas percebem quantas vezes ou quão habilmente elas são enganadas. A mãe que se sente bem ao dar ao seu filho um comprimido de vitamina já pensou em perguntar para si mesma se ele realmente precisa disso? Assinantes das publicações de "alimentos naturais" percebem que os artigos estão inclinados a estimular os negócios para seus anunciantes? Normalmente não.

A maioria das pessoas acha que o charlatanismo é fácil de se identificar. Mas não é. As pessoas que o promovem vestem o manto da ciência. Usam termos e citações (ou distorções de citações) de referências científicas. Em programas de entrevistas, podem ser apresentados como "cientistas à frente de seu tempo". A própria palavra "charlatão" auxilia em sua camuflagem por nos fazer pensar em um personagem bizarro vendendo ungüentos, garrafadas, tônicos em cima de uma carroça -- e, é claro, nenhuma pessoa inteligente compraria esses produtos nos dias de hoje, compraria?

Bem, talvez, garrafadas não estejam vendendo muito bem, ultimamente. Mas e a acupuntura? E os alimentos "orgânicos"? E o desodorante bucal? E a análise do cabelo? E o último livro de regime? E as megavitaminas? E as "fórmulas para combater o estresse"? E os chás que baixam o colesterol? E os remédios homeopáticos? E as "curas" da AIDS pela nutrição? Ou as injeções que lhe dão "energia"? Os negócios estão prosperando para os charlatães da saúde. Suas rendas anuais estão na casa dos bilhões! Redutores de manchas, "estimuladores imunológicos", purificadores d'água, "ajudas ergogênicas", sistemas para "equilibrar a química corporal", dietas especiais para artrite. A lista de produtos é interminável.

O que vende não é a qualidade de seu produtos, mas a habilidade para influenciar seu público. Para aqueles que sentem dor, eles prometem alívio. Para os incuráveis, oferecem esperança. Para os preocupados com a nutrição, eles dizem, "Assegure-se de ter o suficiente". Para um público preocupado com a poluição, eles dizem, "Compre produtos naturais". Para todos, prometem uma saúde melhor e uma vida mais longa. Os charlatães modernos tocam as pessoas emocionalmente. Este artigo mostra de que maneira eles fazem isto.

Apelos à Vaidade

Uma atraente e jovem comissária de bordo disse uma vez a um médico que ela estava tomando mais de 20 comprimidos de vitaminas por dia. "Costumava me sentir meio por baixo o tempo todo", afirmou, "mas agora me sinto bem mesmo!"

"Sim ", o médico respondeu, "mas não existe nenhuma evidência científica de que doses extras de vitaminas possam fazer isso. Por que você não toma os comprimidos um mês e pára no outro, para ver se eles realmente ajudam você ou se foi apenas uma coincidência? Afinal, 300 dólares por ano é muito dinheiro para se jogar fora".

"Veja, doutor", disse ela. "Tanto faz o que o senhor diz. EU SEI que os comprimidos estão me ajudando".

Como foi que esta jovem inteligente se converteu em uma crente fiel? Em primeiro lugar, um apelo a sua curiosidade a convenceu a experimentar. Então um apelo a sua vaidade a convenceu a menosprezar a evidência científica em favor da experiência pessoal -- para pensar por ela mesma. A idéia de suplementação alimentar é reforçada pelo conceito distorcido da individualidade bioquímica -- de que todas as pessoas são únicas o suficiente para menosprezar a Ingestão Diária Recomendada (as IDRs). Os charlatães não dizem que os cientistas deliberadamente estabelecem as IDRs altas o suficiente para superar as diferenças individuais. Um apelo deste tipo, só que mais perigoso, é a sugestão de que apesar de um remédio para uma doença grave pareça não funcionar para outras pessoas, ainda pode funcionar para você. (Você é extraordinário!)

Um apelo mais sutil a sua vaidade aparece na mensagem dos anúncios charlatanescos da TV: Faça você mesmo -- seja seu próprio médico. "Alguém aqui já teve 'sangue cansado?'", perguntava. (Mas, não se dê ao trabalho de descobrir o que está errado com você. Só experimente meu tônico.) "Preocupado com a irregularidade?" ele pergunta. (Não dê atenção aos médicos que dizem que você não precisa de uma atividade intestinal diária. Apenas use meu laxante.) "Quer matar os germes que estão em contato com sua pele?" (Tudo bem que os antissépticos bucais não previnem resfriados.) "Problemas para dormir?" (Não se dê ao trabalho de resolver o problema de base. Só experimente meu sedativo.)

Transformando Compradores em Vendedores

A maioria das pessoas que crêem ter sido auxiliadas por um método não ortodoxo gostam de compartilhar suas histórias de sucesso com os amigos. As pessoas que dão tais testemunhos são normalmente motivadas por um desejo sincero de ajudar seus semelhantes. Raramente elas percebem como é difícil avaliar um "medicamento" tendo como base suas experiências pessoais. Assim como a comissária, a pessoa comum que se sente melhor depois de tomar um produto não será capaz de excluir a coincidência -- ou o efeito placebo (sente-se melhor porque acha que deu um passo positivo). Uma vez que tendemos a acreditar naquilo que os outros nos dizem por experiência pessoal, os testemunhos podem ser armas poderosas de persuasão. Apesar de não serem confiáveis, os testemunhos são a base do sucesso dos charlatães.

Empresas de multinível, que vendem produtos nutricionais sistematicamente transformam seus compradores em vendedores. "Quando você compartilha nossos produtos," diz o manual de vendas de uma dessas empresas, "você não está apenas vendendo. Você está transmitindo notícias sobre produtos nos quais acredita para pessoas que são importantes para você. Faça uma lista das pessoas que conhece, você irá se surpreender como ela pode ser longa. Esta lista é sua primeira fonte de compradores em potencial". Um líder em vendas de outra companhia sugere: "Responda a todas objeções com testemunhos. Eis o segredo para motivar as pessoas!"

Não se surpreenda se algum dos seus amigos ou vizinhos tentarem lhe vender vitaminas. Só nos EUA existem mais de um milhão de pessoas que se filiaram a distribuidores multinível. Como muitos viciados em drogas, eles se tornam fornecedores para sustentar seus hábitos. Um chavão típico de vendedor é mais ou menos assim: "Você não gostaria de ter uma aparência melhor, sentir-se melhor e ter mais energia? Experimente minhas vitaminas por algumas semanas". As pessoas normalmente têm altos e baixos e a demonstração de interesse ou a sugestão de um amigo, ou o pensamento de estar dando um passo positivo, podem de fato fazer uma pessoa se sentir melhor. Muitas das pessoas que experimentam vitaminas pensarão erroneamente que foram ajudadas -- e continuarão a comprar as vitaminas, normalmente por altos preços.

O Uso do Medo

A venda de vitaminas se tornou tão lucrativa que algumas empresas outrora respeitáveis estão promovendo vitaminas com alegações enganosas. Por exemplo, por muitos anos, Lederle Laboratories (fabricante da Stresstabs) e Hoffmann-La Roche anunciaram nas principais revistas que o estresse "rouba" vitaminas do corpo e cria um sério risco de deficiência vitamínica.

Outra maneira esperta para o charlatanismo atrair compradores é a doença inventada. Virtualmente todo mundo tem sintomas de algum tipo-- dores e indisposições, reações ao estresse ou variações hormonais, efeitos do envelhecimento, etc. Rotular esses altos e baixos da vida como sintomas de doenças possibilita ao charlatão oferecer um "tratamento".

Alimentos seguros e proteção do meio-ambiente são assuntos importantes na nossa sociedade. Mas ao invés de abordá-los logicamente, os charlatães da alimentação exageram ou simplificam demais. Para promover alimentos "orgânicos", agrupam todos os aditivos em uma classe e atacam todos como "venenosos". Nunca mencionam que as substâncias tóxicas naturais são evitadas ou destruídas pela tecnologia alimentar moderna. Tampouco revelam que muitos aditivos são substâncias que existem na natureza.

O açúcar tem sido objeto de um ataque particularmente maldoso, sendo (falsamente) responsabilizado por muitas das doenças do mundo. Mas os charlatães fazem mais que alertar sobre doenças imaginárias. Eles vendem "antídotos" para as verdadeiras. Precisa de alguma vitamina C para reduzir os malefícios do fumo? Ou alguma vitamina E para combater os poluentes do ar? Procure seu supervendedor local.

A forma mais grave de charlatanismo do vendedor-aterrorizador tem sido o ataque à colocação de flúor n'água. Apesar da segurança da fluoretação estar estabelecida sem dúvida científica, campanhas bem planejadas para amedrontar têm influenciado milhares de comunidades a não corrigirem a concentração de flúor de suas águas para prevenir cáries. Em conseqüência milhões de crianças inocentes estão sofrendo.

Esperança à Venda

Desde a antiguidade, as pessoas procuram por pelo menos quatro poções mágicas diferentes: a poção do amor, a fonte da juventude, a cura para tudo e a super-pípula atlética. O charlatanismo sempre esteve disposto a realizar estes desejos. Costumavam oferecer chifre de unicórnio, elixires especiais, amuletos e infusões mágicas. Os produtos de hoje são as vitaminas, pólen de abelha, ginseng, Gerovital, pirâmides, "extratos glandulares", tabelas de biorritmo, aromaterapia e muito mais. Mesmo produtos respeitáveis são promovidos como se fossem poções. Cremes dentais e colônias melhoram sua vida amorosa. Loções capilares e produtos para pele nos farão parecer "mais jovens do realmente somos". Atletas olímpicos nos dizem que cereais no café da manhã nos farão campeões. E jovens modelos nos afirmam que os fumantes são sexy e divertidos.

A falsa esperança para doentes graves é a forma mais grave de charlatanismo porque pode afastar as vítimas para longe do tratamento eficaz. Contudo, mesmo quando a morte é inevitável, a falsa esperança pode fazer um grande estrago. Os especialistas que estudam o processo da morte afirmam que a reação inicial é o choque e a descrença, mas a maioria dos pacientes terminais se ajustarão muito bem desde que não se sintam abandonados. As pessoas que aceitam a realidade de seu destino não apenas morrem psicologicamente preparadas, mas também podem deixar seus negócios em dia. Por outro lado, aquelas que compram falsas esperanças podem ficar presas a uma atitude de negação. Desperdiçam não apenas recursos financeiros mas o pouco do tempo que lhes resta.

Truques Clínicos

A característica mais importante à qual podemos atribuir o sucesso dos charlatães provavelmente é sua habilidade para aparentar confiança. Mesmo quando admitem que um método não é comprovado, podem tentar minimizar isto mencionando o quanto é caro e difícil para conseguir nos dias de hoje com que algo seja comprovado, de modo a satisfazer as exigências do FDA. Se eles aparentarem auto-confiança e entusiasmo, é provável que seja contagioso e espalhe para os pacientes e seus entes queridos.

Devido ao fato de as pessoas gostarem da idéia de fazer escolhas, os charlatães freqüentemente se referem aos seus métodos como "alternativos". Corretamente empregado, pode se referir à aspirina e ao Tylenol (paracetamol) como alternativas para o tratamento de dores mais leves. Ambos provaram que são seguros e eficazes para o mesmo propósito. Lumpectomia pode ser uma alternativa a mastectomia radical para o câncer de mama. Ambos possuem registros verificáveis de segurança e eficácia dos quais julgamentos podem ser extraídos. Um método que é inseguro, ineficaz ou não comprovado pode ser uma alternativa genuína para aqueles que são comprovados? Obviamente que não.

Os charlatães nem sempre se limitam a tratamentos ilegítimos. Algumas vezes também oferecem um tratamento legítimo -- o charlatanismo é promovido como algo extra. Um exemplo é o tratamento "ortomolecular" das desordens mentais com altas doses de vitaminas em adição a formas ortodoxas de tratamento. Os pacientes que recebem o tratamento "extra" freqüentemente se convencem que precisam tomar vitaminas para o resto de suas vidas. Tais conseqüências são inconsistentes com os objetivos da boa assistência médica que deve desencorajar tratamentos desnecessários. Outro truque esperto é incluir seus produtos ou procedimentos em uma lista com práticas de outra forma comumente aceitas de modo a promovê-los por associação. Podem dizer, por exemplo que seus métodos funcionam melhor quando combinados com mudanças no estilo de vida (que, muito freqüentemente, produzirá benefícios tangíveis).

A moeda de um lado só é um truque parecido. Quando os pacientes com tratamentos combinados (ortodoxo e charlatão) melhoram, o remédio do charlatão (por ex. o laetrile) leva o crédito. Se os coisas vão mal, o paciente é informado que chegou tarde demais e o tratamento convencional leva a culpa. Alguns charlatães que misturam tratamentos comprovados e não comprovados chamam sua abordagem de terapia complementar ou integrativa.

Os charlatães também capitalizam sobre os poderes naturais de cura do corpo levando crédito sempre que possível pela melhora nas condições do paciente. Uma empresa de multinível -- ávida em evitar problemas legais pela comercialização de seus preparados de ervas -- não faz absolutamente nenhuma alegação. "Você usa o produto," sugere um porta-voz no vídeo de apresentação da empresa, "e me diga o que ele fez por você". Uma jogada oposta -- transferência da culpa -- é utilizada por muitos charlatães do câncer. Se seu tratamento não funciona, é devido a radiação e/ou quimioterapia terem "nocauteado o sistema imunológico".

Outro truque de venda é a utilização de evasivas. Os charlatões freqüentemente usam esta técnica ao sugerir que um ou mais itens em uma lista é a razão para suspeitar que você pode ter uma deficiência de vitaminas, uma infecção por fungos, ou por qualquer outra coisa para a qual eles estejam oferecendo uma cura.

A renúncia é uma tática parecida. Ao invés de prometerem curar sua doença específica, alguns charlatães oferecerão "limpar" ou "desintoxicar" seu corpo, equilibrar sua química, liberar a "energia dos nervos", deixá-lo em harmonia com a natureza, ou fazer outras coisas para "auxiliar o corpo a se curar". Este tipo de renúncia serve a dois propósitos. Uma vez que é impossível medir os processos que charlatão descreve, é difícil provar que ele está errado. Além disso, se o charlatão não é um médico, o uso de terminologia não médica pode ajudar a evitar processos pelo exercício ilegal da medicina.

Os livros que expõem práticas não científicas tipicamente sugerem que o leitor consulte um médico antes de seguir seus conselhos. Este tipo de declaração tem a intenção de proteger o autor e o editor da responsabilidade legal por qualquer idéia perigosa contida no livro. Contudo, tanto o autor como o editor sabem muito bem que a maioria das pessoas não irá perguntar a seus médicos. Se elas quisessem o conselho de seus médicos, provavelmente não estariam lendo o livro.

Algumas vezes o charlatão diz, "Você pode ter me procurado tarde demais, mas vou tentar fazer o melhor para ajudá-lo". Desse modo, se o tratamento falhar, você terá somente a si mesmo para culpar. Os pacientes que enxergam a luz e abandonam o tratamento do charlatão podem também ser responsabilizados por pararem cedo demais.

A "garantia do dinheiro de volta" é um dos truques favoritos dos charlatões que utilizam a venda por mala direta pelo correio. A maioria não tem nenhuma intenção em devolver qualquer dinheiro -- mas mesmo aqueles que estão dispostos, sabem que poucas pessoas se darão ao trabalho de devolver o produto.

Outro forma poderosa de persuasão -- resultado sem esforço -- é padrão nos anúncios que prometem perda de peso sem sacrifícios. Também é a isca dos vendedores de telemarketing que prometem um "valioso prêmio grátis" como bônus na compra de um purificador de água, um suprimento de seis meses de vitaminas ou algum outro produto nutricional ou de saúde. Entre aqueles que mordem a isca, ou não recebem nada ou recebem itens que valem muito menos que seu custo. Os compradores que utilizam cartões de crédito também podem encontrar cobranças não autorizadas em suas contas.

Outra técnica potente é a associação cultural, na qual os promotores se unem a religiosos ou a outras crenças culturais associando seus produtos ou serviços a um artigo de fé ou cultural de seu público alvo.

Em uma luta pela satisfação do paciente, a arte vencerá a ciência quase todas as vezes. Os charlatães são mestres na arte de prover assistência à saúde. O segredo dessa arte é fazer o paciente acreditar que ele é importante como pessoa. Ao fazer isto, o charlatão transborda amor abundantemente. Uma maneira de se fazer isto é ter recepcionistas tomando notas dos interesses e preocupações dos pacientes de maneira a recordá-lo durante visitas futuras. Isto faz com cada paciente se sinta especial de uma maneira muito particular. Alguns charlatães até mesmo enviam cartões de aniversário para cada um de seus pacientes. Apesar de táticas sedutoras poderem levantar psicologicamente os pacientes, podem também encorajar super-confiança em uma terapia inapropriada.

O psicólogo Anthony R. Pratkanis, Ph.D., identificou nove estratégias usadas para vender crenças e práticas pseudocientíficas [Pratkanis AR. How to sell a pseudoscience, Skeptical Inquirer 19(4):19­25, 1995.]. Elas incluem a montagem de objetivos fantasmas (como saúde melhor, paz mental ou melhorar a vida sexual), fazer declarações que tendem a inspirar confiança ("apoiado por mais de 100 estudos") e promover absurdos (associações orgulhosas e a menos disso sem sentido de pessoas que compartilham rituais, crenças, jargões, objetivos, sentimentos, informações especializadas e "inimigos"). Grupos de venda de multinível, cultuadores da nutrição e cruzadas para tratamentos "alternativos" encaixam-se muito bem nesta descrição.

Lidando com a Oposição

Os charlatães estão em uma luta constante com os prestadores legítimos de assistência médica, cientistas do mainstream, agências reguladoras do governo e grupos de defesa do consumidor. Apesar da força desta posição baseada na ciência, os charlatães dão um jeito de prosperar. Para manter sua credibilidade, os charlatães utilizam uma variedade de truques inteligentes de propaganda. Eis alguns dos favoritos:

"Eles perseguiam Galileu!" A história da ciência é marcada por momentos em que grande pioneiros e suas descobertas foram recebidos com resistência. Harvey (a natureza da circulação sangüínea), Lister (técnicas de antissepsia) e Pasteur (a teoria dos germes) são exemplos notáveis. O charlatão de hoje garante descaradamente que é mais um exemplo de alguém à frente de seu tempo. Um exame mais cuidadoso, entretanto, mostrará como isto é improvável. Em primeiro lugar, os pioneiros de antigamente que foram perseguidos viveram em épocas muito menos científicas. Em alguns casos, as oposições a suas idéias originavam-se de forças religiosas. Em segundo lugar, é um princípio básico do método científico que o ônus da prova cabe aos proponentes de uma alegação. As idéias de Galileu, Harvey, Lister e Pateur derrotaram seus opositores porque a solidez de suas idéias pode ser demonstrada.

Um truque parecido, e que é um dos favoritos entre os charlatães do câncer, é a acusação de "conspiração". Como podemos ter certeza de que a Associação Médica Americana (AMA), o FDA, a Sociedade Americana do Câncer e outras entidades não estão envolvidas em alguma trama monstruosa para esconder do público a cura do câncer? Para começar, a história não revela nenhuma prática parecida no passado. A eliminação de doenças graves não é uma ameaça para profissão médica -- os médicos prosperam por eliminar as doenças, não por manter as pessoas doentes. Também deve ser claro que a moderna tecnologia médica não alterou o empenho dos cientistas para eliminar as doenças. Quando a pólio foi erradicada, os pulmões de ferro se tornaram virtualmente obsoletos, mas ninguém se opôs a este avanço porque forçaria os hospitais a mudarem. Tampouco cientistas da área médica lamentarão a eventual derrota do câncer. Além disso, como uma conspiração que escondesse a cura para o câncer poderia ter sucesso? Muitos médicos morrem de câncer todo ano. Você acredita que a grande maioria dos médicos conspirariam para esconder a cura para uma doença que afeta a eles mesmos, a seus colegas e a seus entes queridos? Para ser eficaz, uma conspiração teria de ser mundial. Se o laetrile, por exemplo, realmente funcionasse, muitos cientistas de outras nações rapidamente perceberiam.

Alegações de "repressão" são utilizadas para vender publicações bem como tratamentos. Muitos autores e editores dão a entender que oferecem informações sobre as quais seu médico, a AMA e/ou agências do governo "não querem que você saiba".

O charlatanismo organizado retrata sua oposição à ciência médica como um conflito filosófico ao invés de um conflito sobre métodos comprovados versus não comprovados ou fraudulentos. Isto cria a ilusão de uma "guerra santa" ao invés de um conflito que poderia ser resolvido pelo exame dos fatos. Outra tática divergente é acusar que os críticos do charlatanismo são preconceituosos ou que foram subornados pela indústrias farmacêuticas.

Os charlatães gostam de fazer a acusação de que "a ciência não tem todas as respostas." É verdade, mas a ciência não alega ter. Ao contrário, é um processo racional e responsável que pode responder muitas perguntas -- incluindo se procedimentos são seguros e eficazes para um determinado propósito. É o charlatanismo que constantemente alega ter as respostas para doenças incuráveis. A idéia de que as pessoas buscam os remédios dos charlatães, quando se decepcionam pela inabilidade da ciência de controlar uma doença é irracional. A ciência pode não ter todas as respostas, mas o charlatanismo não tem resposta alguma! Ele toma o seu dinheiro e corta o seu coração.

Muitos tratamentos propostos pela comunidade científica mostraram mais tarde serem inseguros ou inúteis. Tais fracassos se tornam o alvo preferido das investidas contra a ciência por parte dos relações-públicas do charlatanismo organizado. Na verdade, "fracassos" refletem um elemento chave da ciência: sua disposição para testar seus métodos e crenças e abandonar aqueles que mostraram ser inválidos. Os verdadeiros cientistas da área médica não tem nenhum compromisso filosófico a uma abordagem terapêutica em particular, apenas um compromisso em desenvolver e utilizar métodos que sejam seguros e eficazes para um determinado propósito. Quando um remédio charlatanesco é reprovado em um teste científico, seus proponentes simplesmente rejeitam o teste.

Cada um desses truques representam uma técnica básica chamada desorientação -- análoga a que mágicos fazem para desviar a atenção da platéia do que é importante de modo a enganá-la. Quando deparam com uma crítica que eles não podem enfrentar, os charlatães simplesmente mudam de assunto.

Como Não Ser Enganado

A melhor maneira para não ser enganado é ficar longe dos trapaceiros. Infelizmente, nas questões da saúde, isto não é uma tarefa fácil. O charlatanismo não é vendido com um rótulo de advertência. Além disso, a linha que divide aquilo que é charlatanismo daquilo que não é charlatanismo, não é nítida. Um produto que é eficaz em uma situação pode ser parte de um esquema charlatanesco em outra. (O charlatanismo está na promessa, não no produto.) Os profissionais que utilizam métodos eficazes também podem utilizar os ineficazes. Por exemplo, podem misturar conselhos importantes para parar de fumar com conselhos infundados para tomar vitaminas. Mesmo charlatães completos podem aliviar algumas doenças psicossomáticas com sua conduta tranqüilizadora.

Este artigo ilustra como os adeptos do charlatanismo estão vendendo a si mesmos. É triste dizer que, na maioria das disputas entre os charlatães e as pessoas comuns, os charlatães provavelmente ainda estão vencendo.


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A maior parte desse artigo é uma modificação do livro The Health Robbers: A Close Look at Quackery in America, editado por Stephen Barrett, M.D. e William T. Jarvis, Ph.D. Texto publicado originalmente em http://geocities.com/quackwatch/charlvende.html


Fonte: http://www.geocities.com/saudeinfo/vende.htm

terça-feira, 28 de julho de 2009

O que é ciência afinal?


Durante muito tempo o homem iniciou uma jornada em busca do conhecimento para buscar possíveis respostas a certas questões referentes a problemas do seu dia-a-dia. Algumas destas respostas eram, muitas vezes, explicadas de forma mística à medida que utilizavam a mitologia para explica-las. Quando o homem passou a questionar estas respostas e a buscar explicações mais plausíveis, por meio da razão, excluindo suas emoções e suas crenças religiosas, passou-se a obter respostas mais realistas que, demonstradas, muitas vezes ingenuinamente, se aproximavam mais da realidade das pessoas e por isto, talvez, passaram a ser bem aceitas pela sociedade. Podemos dizer que essa nova forma de pensar do homem foi que criou a possibilidade do surgimento da idéia de ciência e que sua tentativa de explicar os fenômenos, por meio da razão, foi o primeiro passo para se fazer ciência. Mas o que é ciência afinal?

Antes de chegar a alguma concepção sobre o que vem a ser ciência primeiramente analisaremos algumas concepções que possa fornecer dados relevantes para a elaboração de uma definição sobre o que vem a ser ciência. Iniciarei então com a idéia de Rubem Alves que considera a ciência como uma hipertrofia de capacidades que tosos têm e como uma especialização, um refinamento de potenciais comuns a todos na qual sua aprendizagem é um processo de desenvolvimento do senso comum.

A ciência é uma especialização, um refinamento de potenciais comuns a todos. [...] é a hipertrofia de capacidades que todos têm. Isto pode ser bom, mas pode ser muito perigoso. Quanto maior a visão em profundidade, menor a visão em extensão. A tendência da especialização é conhecer cada vez mais de cada vez menos [...] a aprendizagem da ciência é um processo de desenvolvimento progressivo do senso comum. Só podemos ensinar e aprender partindo do senso comum de que o aprendiz dispõe (Rubem: 1981, p. 12).

Entende-se por senso comum o conhecimento adquirido pelas pessoas através do convívio social com outros indivíduos (o senso comum advêm das múltiplas relações entre os familiares, os amigos, na rua e até mesmo na escola) de onde é extraído o conhecimento científico conforme expressa a citação abaixo.

Senso comum é aquilo que não é ciência [...] a ciência é uma metamorfose do senso comum. Sem ele, ela não pode existir. (Rubem: 1981, p. 14)

A diferença entre o senso comum e o conhecimento científico é que o senso comum é formado por sentimentos, desejos e misticismo já, o conhecimento científico, é formado através da razão e de forma metodologicamente rigorosa procurando excluir, do seu contexto, as emoções, as crenças religiosas e os desejos do homem. Isto quer dizer que há uma relação entre estes conhecimentos, pois se pode observar uma continuidade entre o pensamento científico e o senso comum.

Estou tentando mostrar que existe uma continuidade entre o pensamento científico e o senso comum [...].(Rubem: 1981, p. 17).

A comunidade científica pode ter criado a expressão "senso comum" , como uma forma de diferenciar o cientista do cidadão comum, causando uma certa polêmica, mas o que nos interessa é que, atualmente, essa mesma comunidade científica, procura enveredar os caminhos a busca do conhecimento científico para possibilitar um maior avanço da ciência. Isto porque, segundo eles, devemos aprender a inventar soluções novas abrindo portas até então fechadas e a descobrir novas trilhas, devemos procurar a aprender maneiras novas de sobrevivência.

Pessoas que aprendem a inventar soluções novas são aquelas que abrem portas até então fechadas e descobrem novas trilhas. A questão não é saber uma solução já dada, mas ser capaz de aprender maneiras novas de sobreviver (Rubem: 1981, p. 23).

Durante toda a história da humanidade o homem sempre se preocupou em organizar as coisas, seja no trabalho, em casa ou em qualquer outra situação para que se possa fazer as coisas com mais praticidade e qualidade a fim de facilitar nossa vida no dia-a-dia. O mesmo ocorre na ciência, pois os cientistas quando anunciam uma teoria, ele procura mostrar como se processa a ordem das coisas para que se possa formar um modelo representativo da realidade. Esse modelo tem por objetivo a busca de um padrão que possibilite fazer previsões. Isto quer dizer que o homem, através da ciência, busca uma ordem das coisas e que;

A ordem é a primeira inspiração da ciência. Quando um cientista anuncia uma lei ou uma teoria, ela está contando como se processa a ordem, está oferecendo um modelo da ordem. Agora ele poderá prever como a natureza vai se comportar no futuro. É isto que significa testar uma teoria: ver se, no futuro, ela se comporta como o modelo previu. [...] as coisas são nos céus como são no homem. Tudo é um cosmos, ordem [...] (Rubem: 1981, p.27).

Para buscar essa ordem tem-se que observar e criar uma lógica, imaginar uma possível solução para um problema norteador, pois embora a observação ofereça dados para a construção de uma ordem é a imaginação que lapida, dar forma, a uma matéria bruta e uniforme. Analogicamente podemos dizer que;

Sem ordem não há problema a ser resolvido. Porque o problema é exatamente construir uma ordem ainda invisível de uma desordem visível e imediata. [...] a coisa a que os modelos se referem não é dada à observação direta. Eles se referem a uma ordem oculta, invisível. Esta é a razão porque, muito embora a observação ofereça pistas para a sua construção, a imaginação é o artista que dá forma a esta matéria bruta e uniforme. (Rubem: 1981, pp. 28-29).

A busca dessa ordem só pode ocorrer através da inteligência partindo do ponto que se quer chegar para evitarmos erros e tentativas inúteis. Pois,

A inteligência segue o caminho inverso da ação. E é somente isso que a torna inteligência. Começando de onde se deseja chegar, evita-se o comportamento errático e desordenado a que se dá o nome de "tentativa e erro". (Rubem, Alves: 1981, p. 33).

É estranho falar em começar uma busca partindo do final, daquilo que se quer alcançar, principalmente quando se está procurando algo invisível "a ordem". Mas é isso que os cientistas fazem para poderem comprovar ou negar suas teorias, buscam o invisível.

Nós olhamos não para as coisas que são vistas, mas para as coisas que não são vistas. Porque as coisas que são vistas são transitórias, mas as coisas que não são vistas são eternas [...] a ciência se inicia com problemas [...] seu objetivo é descobrir uma ordem invisível que transforme os fatos de enigma em conhecimento. [...] os cientistas só buscam os fatos que são decisivos para a confirmação ou negação de suas teorias (Rubem, Alves: 1981, pp. 39-42).

Partindo da concepção que os cientistas só buscam fatos decisivos para a confirmação ou negação de suas teorias também é necessário saber que só os resultados destas teorias é que permite julgar se a elaboração dos conhecimentos produzidos segue ou não a via segura da ciência como ocorreu com a lógica, a matemática e a física, por exemplo. Pois, o que há de razão nas ciências é algo que é conhecido como a priori. É desse algo que possibilita a razão se referir ao seu objeto de estudo através da determinação deste e do seu conceito ou então pela sua realização. Esse termo a priori corresponde a aquele conhecimento que já possuímos sem tê-lo visto e representado, pois ele existe apenas na mente, abstratamente que, torna possível, antes da realização de um experimento, já existir um plano, uma razão de realizá-lo e, conseqüentemente, uma teoria.

Compreenderam que a razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios, que determinam nos seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas interrogações em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso, realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura e de que necessita. (Kant: 1997, p.18).

Isto torna possível dizer que talvez haja uma certa dependência da observação em relação à teoria. Pois como é possível elaborarmos todo um procedimento para prepararmos um laboratório experimental e fazermos uma experiência sem que tenhamos uma idéia do que queremos investigar, por que investigar ou para que investigar? Montar um laboratório é um ato instintivo separado do pensamento, da lógica e da razão? Um indutivista ingênuo acredita que a observação cuidadosa e sem preconceitos produz uma base segura da qual pode ser obtido verdades ou conhecimento científico.

Existem duas suposições importantes na posição indutivista ingênua em relação à observação. Uma é que a ciência começa com a observação. A outra é que a observação produz uma base segura da qual o conhecimento pode ser derivado. (Chalmers: 1929, p. 46).

Mas há quem discorde desta concepção e mostre que estes indutivistas estão equivocados, pois de acordo com a explicação indutivista da ciência, a base segura sobre a qual as leis e teorias que constituem a ciência se edificam é constituída de proposições de observação públicas e não de experiências subjetivas, privadas, de observadores individuais. A explicação indutivista requer a derivação de afirmações universais a partir de afirmações singulares, por indução. Pode-se dizer que experiências perceptivas são acessíveis a um observador, mas proposições de observação não o são. É notório que as proposições de observação como formadora da base da ciência pode ver alguma teoria que precede todas as proposições de observação e que elas são sujeitas a falhas quanto as teorias que pressupõe.

Uma vez que a atenção é focada sobre as proposições de observação como formando a base segura alegada para a ciência pode-se ver que, contrariamente a reivindicação do indutivista, algum tipo de teoria deve preceder todas as proposições de observação e elas são tão sujeitas a falhas quanto as teorias que pressupõem. (Chalmers: 1929, p. 53).

Assim, o relato indutivista ingênuo da ciência foi solapado pelo argumento de que as teorias devem preceder as proposições de observação, então é falso afirmar que a ciência começa pela observação. As proposições de observação são tão sujeitas à falhas quanto às teorias que elas pressupõem e, portanto, não formam uma base segura para a construção de leis e teorias científicas. Isto quer dizer que;

A ciência não começa com proposições de observação porque algum tipo de teoria as precede; as proposições de observação não constituem uma base firme na qual o conhecimento científico possa ser fundamentado porque são sujeitas à falhas. Contudo, não quero afirmar que as proposições de observação não deveriam ter papel algum na ciência. Não estou recomendando que todas elas devam ser descartadas por serem falíveis. Estou simplesmente argumentando que o papel que os indutivistas atribuem às proposições de observação na ciência é incorreto. (Chalmers: 1929, p. 58).

Diante do que foi exposto até aqui posso afirmar que a observação depende sim da teoria, pois;

As teorias podem ser, e geralmente são, concebidas antes de serem feitas às observações necessárias para testa-las. (Chalmers: 1929, pp. 60-61)

Na concepção dos falsificacionistas a observação é orientada pela teoria e a pressupõe. Eles abandonam qualquer afirmação que fazem supor que as teorias podem ser estabelecidas como verdadeiras ou como provavelmente verdadeiras a luz da evidência observativa. Para eles as teorias propostas devem ser testadas por observação e por experimentação. Teorias que não passarem nos testes devem ser abandonadas e substituídas por outras.

Uma vez propostas, as teorias especulativas devem rigorosa e inexoravelmente testadas por observação e experimento. Teorias que não resistem a testes de observação e experimentais devem ser eliminadas e substituídas por conjecturas especulativas ulteriores. A ciência progride por tentativa e erro, por conjecturas e refutações. Apenas as teorias mais adaptadas sobrevivem. Embora nunca se possa dizer legitimamente de uma teoria que ela é verdadeira, pode-se confiantemente dizer que ela é melhor disponível, que é melhor do que qualquer coisa que veio antes (Chalmers: 1929, p. 64).

A visão falsificacionista vê a ciência como um conjunto de hipóteses que são experimentalmente propostas com a finalidade de descrever ou explicar o comportamento de algum aspecto do mundo ou do universo. Para eles toda hipótese ou conjunto de hipóteses deve satisfazer para ter garantido o status de lei ou teoria científica. Para fazer parte da ciência uma teoria deve ser falsificável.

O falsificacionista exige que as hipóteses científicas sejam falsificáveis [...] Uma lei ou teoria científica idealmente nos daria alguma informação sobre como o mundo de fato se comporta, eliminando assim as maneiras pelas quais ele poderia (é lógico) possivelmente se comportar [...] (Chalmers: 1929 p. 67).

Até aqui vimos os relatos tradicionais da ciência, do indutivismo e do falsificacionismo que, ao contrário da teoria da ciência deKuhn, que fundou o Relativismo, não realizaram uma tentativa de fornecer uma teoria mais corrente com uma situação histórica. Kuhn faz essa tentativa dando ênfase ao caráter revolucionário do progresso científico, em que uma revolução científica implica no abandono de uma estrutura teórica (paradigma) e sua substituição por outra diferente e incompatível. Ele acreditava que;

Uma ciência madura é governada por um único paradigma. O paradigma determina os padrões para o trabalho legítimo dentro da ciência que governa. Ele coordena e dirige a atividade de "solução de charadas" do grupo de cientistas normais que trabalham em seu interior. A existência de um paradigma capaz de sustentar uma tradição de ciência normal é a característica que distingue a ciência da não-ciência (Chalmers: 1929 p. 125).

Diante de tudo que foi exposto podemos chegar a uma noção do que vem a ser ciência através de algumas concepções aqui abordadas sobre a produção do conhecimento científico. Assim, posso dizer que "ciência" é à busca de ordem através de paradigmas que possibilite conhecer como o mundo se comporta em busca de soluções, por meio da razão, de questões de enigmas que possam ser transformadas em conhecimentos que possibilite novas maneiras de sobrevivência do homem.

Fonte: Webartigos.com

quinta-feira, 16 de julho de 2009

A Carta do Cacique Seattle, em 1855

Fonte: Cultura Brasil



Em 1855, o cacique Seattle, da tribo Suquamish, do Estado de Washington, enviou esta carta ao presidente dos Estados Unidos (Francis Pierce), depois de o Governo haver dado a entender que pretendia comprar o território ocupado por aqueles índios. Faz mais de um século e meio. Mas o desabafo do cacique tem uma incrível atualidade. A carta:

"O grande chefe de Washington mandou dizer que quer comprar a nossa terra. O grande chefe assegurou-nos também da sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não necessita da nossa amizade. Nós vamos pensar na sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará a nossa terra. O grande chefe de Washington pode acreditar no que o chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na mudança das estações do ano. Minha palavra é como as estrelas, elas não empalidecem.

Como pode-se comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia é estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como pode então comprá-los de nós? Decidimos apenas sobre as coisas do nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo.

Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra é igual ao outro. Porque ele é um estranho, que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, nem sua amiga, e depois de exaurí-la ele vai embora. Deixa para trás o túmulo de seu pai sem remorsos. Rouba a terra de seus filhos, nada respeita. Esquece os antepassados e os direitos dos filhos. Sua ganância empobrece a terra e deixa atrás de si os desertos. Suas cidades são um tormento para os olhos do homem vermelho, mas talvez seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende.

Não se pode encontrar paz nas cidades do homem branco. Nem lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o zunir das asas dos insetos. Talvez por ser um selvagem que nada entende, o barulho das cidades é terrível para os meus ouvidos. E que espécie de vida é aquela em que o homem não pode ouvir a voz do corvo noturno ou a conversa dos sapos no brejo à noite? Um índio prefere o suave sussurro do vento sobre o espelho d'água e o próprio cheiro do vento, purificado pela chuva do meio-dia e com aroma de pinho. O ar é precioso para o homem vermelho, porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar, animais, árvores, homens. Não parece que o homem branco se importe com o ar que respira. Como um moribundo, ele é insensível ao mau cheiro.

Se eu me decidir a aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo que possa ser de outra forma. Vi milhares de bisões apodrecendo nas pradarias abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais valioso que um bisão, que nós, peles vermelhas matamos apenas para sustentar a nossa própria vida. O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem os homens morreriam de solidão espiritual, porque tudo quanto acontece aos animais pode também afetar os homens. Tudo quanto fere a terra, fere também os filhos da terra.

Os nossos filhos viram os pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio e envenenam seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias. Eles não são muitos. Mais algumas horas ou até mesmo alguns invernos e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nestas terras ou que tem vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar, sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.

De uma coisa sabemos, que o homem branco talvez venha a um dia descobrir: o nosso Deus é o mesmo Deus. Julga, talvez, que pode ser dono Dele da mesma maneira como deseja possuir a nossa terra. Mas não pode. Ele é Deus de todos. E quer bem da mesma maneira ao homem vermelho como ao branco. A terra é amada por Ele. Causar dano à terra é demonstrar desprezo pelo Criador. O homem branco também vai desaparecer, talvez mais depressa do que as outras raças. Continua sujando a sua própria cama e há de morrer, uma noite, sufocado nos seus próprios dejetos. Depois de abatido o último bisão e domados todos os cavalos selvagens, quando as matas misteriosas federem à gente, quando as colinas escarpadas se encherem de fios que falam, onde ficarão então os sertões? Terão acabado. E as águias? Terão ido embora. Restará dar adeus à andorinha da torre e à caça; o fim da vida e o começo pela luta pela sobrevivência.

Talvez compreendêssemos com que sonha o homem branco se soubéssemos quais as esperanças transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais visões do futuro oferecem para que possam ser formados os desejos do dia de amanhã. Mas nós somos selvagens. Os sonhos do homem branco são ocultos para nós. E por serem ocultos temos que escolher o nosso próprio caminho. Se consentirmos na venda é para garantir as reservas que nos prometeste. Lá talvez possamos viver os nossos últimos dias como desejamos. Depois que o último homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará a viver nestas florestas e praias, porque nós as amamos como um recém-nascido ama o bater do coração de sua mãe. Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a como nós a protegíamos. Nunca esqueça como era a terra quando dela tomou posse. E com toda a sua força, o seu poder, e todo o seu coração, conserva-a para os seus filhos, e ama-a como Deus nos ama a todos. Uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus. Esta terra é querida por Ele. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum."